segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Cesário Verde - O aspecto pictórico


Em 1874, iniciam-se, em Paris, as exposições impressionistas, mas do Grupo do Leão é precisamente Cesário Verde, que nada tem a ver com a pintura, quem antecipa o impressionismo em Portugal.
Em literatura, o impressionismo manifesta-se pelo processo de atribuir à linguagem, às palavras, o mesmo efeito que as pinceladas de cor imprimem à tela, ou seja, o importante é exprimir as impressões que a observação do real suscita e não a figuração do real. Deste modo, para Cesário, importa mais a impressão que o objecto causa do que a enumeração pormenorizada de detalhes.
O poema De Tarde ilustra bem esta técnica impressionista e é, por muitos críticos, considerado equivalente a uma tela de Manet, particularmente a sua obra "Le déjeuner sur l'herbe":

Naquele “pic-nic” de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, indo o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!

Temos neste poema:
  • a captação de um flagrante do quotidiano burguês: uma determinada imagem, um instante que o sujeito poético surpreende - "Houve uma coisa simplesmente bela";
  • as sugestões cromáticas, de que a visão é a principal responsável: "azul", "rubro", "púrpuro";
  • a sugestão da luz - "inda o sol se via";
  • as sugestões gustativas: "talhadas de melão, damascos / E pão-de-ló molhado em malvasia".
O que o sujeito poético nos oferece deste quadro é, acima de tudo, as suas impressões, ou seja, as sensações através das quais essa realidade chega até nós, leitores. Essa dimensão impressionista é conseguida, a nível linguístico, fundamentalmente, através da anteposição do adjectivo em relação ao nome e da utilização do assíndeto.
O próprio poeta refere, no poema, a possibilidade de equivalência com uma pintura, quando diz tratar-se de "(...) uma coisa simplesmente bela / E que, sem ter história nem grandezas, / Em todo o caso dava uma aguarela".
É, assim, notória a preferência pelo acontecimento simples e prosaico, que nada tem de grandioso, o que, efectivamente, se assemelha às tendências estéticas dos meados do séc. XIX.

Podemos detectar esse carácter impressionista da linguagem de Cesário, nos quais se identifica esse modo de apreender o real através de impressões: cor, luz, movimento...

E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.


Num Bairro Moderno

Pinto quadros por letra, por sinais,
Tão luminosos como os do Levante,


Nós

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

O Sentimento dum Ocidental

in Colecção Resumos da Porto Editora

Cesário Verde - A evasão do real e a pretensa objectividade


Apesar da poesia de Cesário Verde se alicerçar no real objectivo, é possível verificar que a imaginação transfiguradora interfere, frequentemente, na visão objectiva que o sujeito poético tem da realidade.
Segundo Jacinto do Prado Coelho, "artista (...) não é o que se limita a copiar o real, é o homem de imaginação privilegiada que dá um sentido às coisas e cria, a partir do concreto, uma super-realidade". É frequente encontrarmos nos poemas de Cesário Verde outras realidades que estão para além da realidade primeira, imediata, observável, e que surgem por meio da imaginação criadora e transfiguradora, possibilitando ao sujeito poético a fuga, a evasão do real.
Detectamos essa evasão do real em poemas como:
  • "Num Bairro Moderno" - a visão do cesto de vegetais da hortaliceira é transfigurada e dá lugar à visão de um corpo humano - "Há colos, ombros, boca, um semblante / Nas posições de certos frutos. (...) surge um melão que me lembrou um ventre."
  • "O Sentimento dum Ocidental" - a deambulação do sujeito poético pelos cais da cidade suscita-lhe imagens de um passado longínquo - "Luta Camões no sul, salvando um livro a nado! / Singram soberbas naus que eu não verei jamais!"
  • "Cristalizações" - a visão das "árvores despidas", realidade imediata, transforma-se em outras imagens que vão para além desse imediato - "Mastros, enxárcias, vergas!"
Constatamos na poesia de Cesário Verde um modo especial de ver a realidade, que cede lugar ao subjectivismo de um sujeito poético que sabe poetizar a realidade concreta.

in Colecção Resumos da Porto Editora