sábado, 19 de maio de 2012

Perdi-me dentro de mim - Mário de Sá-Carneiro






Estudei, além da lírica de Mário de Sá-Carneiro,  a Confissão de Lúcio. Lembro-me de ter lido e relido. E fiquei apaixonada pela escrita de Sá-Carneiro!

A Confissão de Lúcio é narrada na primeira pessoa.
A narrativa começa do fim para o início. Na primeira página, o narrador revela-nos toda a desilusão que tomou conta da sua vida, depois dos acontecimentos que vai narrar, chegando até a considerar "uma coisa sorridente" os  dez anos que passara na prisão por um crime que não cometera. Há em toda a narrativa uma certa ironia que advém do próprio narrador. É como se ele estivesse sempre a analisar o passado com os olhos do presente, para imprimir mais veracidade aos factos que vai narrando, porém, a sua tentativa é malograda, uma vez que a ironia assume apenas um tom de riso profilático e cai completamente por terra no final, pois o narrador nada mais é do que uma vítima confessa.

As várias funções exercidas pelo narrador/personagem, Lúcio, na história - ele é ao mesmo tempo personagem, narrador e receptor de outras obras - indicam a ambiguidade, inerente à linguagem, em que o significante desliza constantemente sob o significado, tornando impossível o estabelecimento de qualquer sentido definitivo. E também que o oposto (ou o complemento?) da criação é a destruição: Lúcio destrói no fogo a sua peça Brasas, Ricardo mata Marta, sua criação, o final da obra da americana coincide com a sua morte.

O objectivo da narrativa é deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?).

Ele intensifica o caráter documental de sua obra: a novela é apresentada ora como confissão de factos consumados ora como um diário íntimo.

“Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.

(...) E são apenas factos que relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)

Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverosímil.

(A Confissão de Lúcio - Prólogo)


A personagem principal desta narrativa cumpre um destino absurdo que não é possível explicar pela lógica comum: deixa-se prender e condenar por um crime que não cometeu e que afinal não existiu.



Personagens

É o triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e Marta, o cerne fundamental que levará à desilusão do narrador no final da narrativa.

Ricardo - o protagonista dos factos narrados. Trata-se de um poeta que, antes de ser apresentado a Lúcio, é mencionado por várias personagens. Sua marca principal é a incoerência: seu maior problema é que se sente totalmente estranho à vida normal, ao mesmo tempo que sente uma irresistível atracção por ela.

Lúcio Vaz - narrador-personagem, jovem escritor português, é a duplicação do eu de Ricardo, ou seja, o seu outro, o grande conflito que marca toda a obra de Sá-Carneiro.

Marta - uma mulher belíssima, que aparece envolvida sempre em mistério durante toda a narrativa. É esposa de Ricardo, porém Lúcio apaixona-se por ela. Os dois têm uma relação extra-conjugal. A Lúcio parece-lhe que a sua relação com Marta é óbvia demais. Ele tem quase a certeza de que Ricardo sabe da sua ligação, e acha estranho que este não se manifeste. Marta, entretanto, deixa de frequentar a casa de Lúcio e passa a encontrar-se com Sérgio Warginsky, outro visitante da casa de Ricardo, o que deixa Lúcio horrorizado: Marta mantém uma relação com três homens.


Acção

Num primeiro momento, a história desenrola-se em Paris, em 1895. O narrador, Lúcio, fala do meio artístico e destaca-se nessa narração a figura de Gervásio Vila Nova: escultor, dono de uma conversa envolvente, embora fosse algo “disperso, quebrado, ardido”. Destaca-se ainda, nesse momento, a admiração que vai desenvolver por uma misteriosa americana, mulher rica e linda: “Criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada - e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado, alucinante.” Por ela fica a saber da chegada de Ricardo Loureiro, poeta, cuja obra era muito admirada.

Numa festa promovida por Gervásio, Lúcio é apresentado a Ricardo. Ficam amigos.
As conversas com Ricardo pareciam atingir a alma de Lúcio. Desta amizade nasce uma relação que pode ser representada como sendo uma projecção de Lúcio sobre o outro, Ricardo. Pressente-se um tom de homossexualidade: “Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.”

Ricardo vai para Lisboa, separam-se por um ano, trocam cinco cartas durante esse período. Em Dezembro de 1897, Ricardo retorna a Paris: “As suas feições haviam-se amenizado, acetinado - feminizado, eis a verdade.” Lúcio sabia, no entanto, que Ricardo havia casado. Num jantar, Lúcio é apresentado a Marta: “Era uma linda mulher loira, muito loira, alta, escultural (....) Cheguei a ter inveja de meu amigo.”

Os três tornaram-se amigos inseparáveis. Participavam em reuniões de amigos intelectuais e artistas, em que se destacava a figura de Sérgio Warginsky, músico russo, que, no entanto, cria uma impressão negativa, quase de ódio, em Lúcio.

Envolvido com a sua produção literária, por vezes, Ricardo deixava Lúcio a sós com Marta. Entre situações, às vezes, constrangedoras que beiravam o limite da amizade, Lúcio começa a sentir-se atraído por Marta. Marta torna-se amante de Lúcio, apesar deste continuar amigo de Ricardo. Estranhamente, Lúcio reflecte sobre alguns pormenores das conversas de Ricardo, como quando o amigo lhe diz que ao observar-se no espelho não via o seu reflexo: “Ah! Não calcula o meu espanto... a sensação misteriosa que me varou... Mas quer saber? Na foi uma sensação de pavor, foi uma sensação de orgulho.”

Por outro lado, Marta também parecia a Lúcio uma mulher irreal: “sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim.” Nada confirmava a sua existência além do perfume penetrante que ficava no leito, ele precisava não de provar o amor, mas de provar a existência dessa misteriosa mulher que se lhe entregava e que o fazia trair o amigo: “As suas feições escapavam-me como nos fogem as das personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas que conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista quem vivia mais perto dela.”

Depois de algum tempo, Marta torna-se fugidia, demora-se menos com Lúcio, os encontros tornam mais difíceis. Lúcio começa a desconfiar de Marta e tem ciúmes. Nas tardes em que apenas encontra Ricardo, começa a procurá-la desesperadamente. Uma vez, seguindo Marta, descobre que ela fora ao apartamento de Sérgio Warginsky. Nessa época, Lúcio terminara uma peça de teatro e passeia-se pelas ruas. Num desses passeios, encontra Ricardo e este faz-lhe uma estranha confissão,  Marta é uma criação sua: “Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha própria alma,. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós dois... (...) E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te deveria dedicar.”

Nesta cena alucinante, Ricardo mata Marta, e então Lúcio descobre que um mistério envolvia essa morte: Marta folheava um livro, em pé, ao fundo da casa. Ricardo dá-lhe um tiro à queima roupa:

“E então foi o Mistério... o fantástico Mistério da minha vida...

Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela não era Marta - não! - era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés - sim, aos meus pés! - caíra o seu revolver ainda fumegante!...”

Marta desaparecera, como uma ilusão, uma névoa.






1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

No meu tempo de escola, creio que o autor era de "leitura obrigatória"... Mas nada ou quase nada me ficou. E não tenho lido nada dele talvez há mais de 20 anos...
O teu magnífico post despertou-me para a sua leitura... vou colocá-lo na minha agenda...
Mena, querida amiga, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.