segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Mar Português - Fernando Pessoa - Mensagem


Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, in Mensagem



Este poema pertence à segunda parte da "Mensagem". É constituído por duas sextilhas, com o esquema rimático AABBCC, com rima emparelhada e métrica irregular. Ao nível fónico, verifica-se, na primeira estrofe, mais épica, o predomínio da vogal áspera ou forte (a), há quatro versos com rima aguda ou masculina e apenas dois com rima grave ou feminina.

Na segunda estrofe, de carácter mais reflexivo, aparecem sons fechados (ê e ô) a alternarem com sons abertos (á e é).

Cada verso apresenta um ritmo binário, pois aparece dividido em dois segmentos de tamanho aproximado: "Ó Mar Salgado / quanto do teu sal // São lágrimas / de Portugal //".

Trata-se de um poema épico-lírico, em que "o poeta sentiu, imaginando, os trabalhos e as dores que o Império custou", procurando unir o trágico e o heróico (Coelho, J. P. - Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa).


O poema, ao nível da estrutura interna, divide-se em duas partes:

  • Na primeira, o poeta procura apresentar e interiorizar uma realidade épica, os sacrifícios necessários para que o povo português conquistasse o mar.
  • Na segunda, o poeta tece considerações sobre essa realidade e os sacrifícios que a sua concretização exigiu, afirmando que "tudo vale a pena se a alma não é pequena" - no mar se espelha o céu (habitação de Deus) e quem quiser aproximar-se dele, pelo heroísmo, "tem de passar além da dor".
Mais uma vez, como em "O menino da sua mãe", a ideia de Império aparece associada à de Portugal e às de dor e sacrifícios. Verifica-se ainda a intertextualidade com Camões. Todavia, a concepção do herói é diferente: em Pessoa o herói é mítico e lendário, enquanto, em Camões, assume um carácter mais humano e terreno.

A nível morfo-sintáctico, verifica-se uma certa pobreza do texto em adjectivos (apenas dois): "salgado" e "pequena". Predominam os nomes e os verbos, como convém às características do tema desenvolvido.
Os tempos verbais, que exprimem uma dualidade - acontecimentos passados / sua validade no presente e no futuro - , são o pretérito perfeito e o presente do indicativo. O primeiro evoca todos os dolorosos sacrifícios necessários no passado glorioso e o segundo remete-nos para os valores intemporais da tenacidade, do espírito de luta e da eterna necessidade da procura e da auto-superação, única maneira de justificar a existência.

Ao nível semântico são de salientar:
  1. A apóstrofe inicial dirigida ao Mar Salgado.
  2. A personificação em Mar Salgado, pois o poeta escreve em maiúsculas.
  3. As exclamações de toda a primeira estrofe, que servem os intuitos épicos de Pessoa e vêm dar ao poema uma entoação e um ritmo adequados.
  4. A interrogação no início da segunda estrofe - "Valeu a pena?" - e que é importante para nos darmos conta do início de um balanço ou reflexão sobre a utilidade de tantos sacrifícios.
  5. A metáfora - o sal são lágrimas de Portugal.
  6. A hipérbole neste mesmo verso.
  7. As palavras "cruzarmos", "Bojador" e "espelhou" são também usadas com sentido metafórico.
  8. O carácter aforístico de algumas frases deste poema: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena"; "Quem quer passar além do Bojador tem de passar além da dor".
  9. A repetição intencional de algumas palavras que, na primeira estrofe, vêm aumentar o dramatismo da evocação das situações provocadas pelas descobertas: a) "... Quantas mães (...); Quantos filhos (...); Quantas noivas (...). b) "Valeu a pena? Tudo vale a pena". c) "Quem quer passar além do Bojador / tem de passar além da dor".
  10. O facto de os dois primeiros versos resumirem toda a história passada, e mesmo presente, de um povo, e poderem, portanto, ser apresentados como exemplo da grande capacidade de síntese e aproveitamento das potencialidades expressivas das palavras mais banais, que são típicas de Fernando Pessoa ortónimo.

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