quarta-feira, 2 de março de 2011

Discurso de Baco - análise


Canto VI - Discurso de Baco no consílio dos deuses marítimos (est. 27-34)


A intenção de Baco, tomando a palavra neste consílio, convocado por Neptuno a seu pedido, é de convencer os deuses a suspenderem a viagem dos portugueses, que, em pleno Oceano Índico, já se dirigiam à Índia, guiados por um marinheiro conhecedor daqueles mares, que lhes havia sido concedido pelo rei de Melinde.

Baco dirige-se primeiramente a Neptuno e Oceano, deuses que tinham o domínio dos mares, recordando-lhes a rigorosa proibição, sempre imposta por eles próprios aos homens, de ultrapassarem os seus limites terrestres e alertando-os para o grave descuido de permitirem a atrevida transgressão de humanos, "tão fracos como atrevidos" (27 e 28); recorda-lhes ousadias do passado, como a aventura de Dédalo e dos Argonautas, e adverte-os contra "soberbos e insolências" verificadas "cada dia", o que poderá subverter o domínio dos deuses sobre os homens (29); chama-lhes a seguir a atenção sobre o atrevimento dos portugueses que agora mesmo vão devassando os seus mares proibidos (30); recorda-lhes, depois, o castigo infligido aos argonautas ("Mínias"), pedindo para os lusitanos igual vingança (31); Baco confessa que é por causa de recear perder as grandes honras que ganhou, quando subjugou as regiões indianas, que agora se encontra neste consílio, discursando contra o povo luso (32); reprova o facto de Júpiter e os Fados terem deixado seguir os portugueses (referência indirecta à sua opinião, derrotada, no primeiro consílio dos deuses (33); finalmente Baco declara que, por causa dessa ofensa, fugiu do Olimpo (34); e o poeta põe termo ao discurso de Baco, afirmando que as lágrimas o embargaram, não o deixando prosseguir (34).
Atente-se nesta sequência lógica destinada a convencer não só Neptuno e Oceano, mas também os outros deuses:
O decreto divino de proibição de os mortais se aventurarem pelos mares -> os castigos que tradicionalmente se impunham aos transgressores, como Dédalo e os argonautas -> o actual atrevimento dos portugueses deve ter o mesmo castigo -> Baco ganhou a sua fama no oriente pela vitória estrondosa nas regiões indianas, fama que está em risco de perder -> Baco declara-se gravemente ofendido com o facto de Júpiter ter permitido a viagem dos portugueses -> Baco desfaz-se em lágrimas e não pode prosseguir o seu discurso -> os deuses comovem-se e mandam soltar os ventos contra a armada do Gama.
É assim que Baco com esta dinâmica lógica do seu discurso, atrai os deuses à sua causa, pelo menos até que Vénus, a fascinante protectora do povo luso, não oponha ao discurso lógico de Baco a técnica mais eficaz da sedução: em plena tempestade, as ninfas, adornadas por Vénus especialmente para o efeito, surgem espectacularmente deslumbrantes diante dos Ventos, acalmando-os imediatamente (VI, de 86 a 91).

É no Canto VI que começa o segundo ciclo épico, na perspectiva de Jorge de Sena. Daí qe surja um novo Consílio dos Deuses, agora convocado por Neptuno a pedido de Baco, o de "estômago danado", na expressão de Marte. Na altura em que os portugueses levavam novo alento, já quase com a Índia à vista, o maior oponente à acção dos portugueses surge como uma espécie de anti-herói despeitado na defesa da sua própria glória, porque só continuaria a ser herói na medida em que os portugueses o não fossem. Em relação à mensagem central d'Os Lusíadas, Baco acaba por servir de motivo enaltecedor da acção dos portugueses, pois aparece sempre como forte oponente e símbolo das forças ocultas que se opunham à gloriosa façanha do povo luso. Há quem veja também em Baco o símbolo da civilização oriental tão diferente e oposta à civilização ocidental encarnada agora pelos portugueses. Note-se que, na esfera dos divinos ocupantes do Olimpo, Baco se revela como o mais lúcido dos deuses, pois foi o único que viu o perigo de as divindades serem suplantadas pelos homens: "vistes, e ainda vemos cada dia, soberbas e insolências tais, que temo... venham deuses a ser e nós mortais". Uma vez que os homens, aqui os portugueses, dominassem as forças ocultas da natureza, os divinos habitantes do Olimpo ficariam a ser apenas belas ficções que só serviriam para se fazerem "versos deleitosos".


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