sábado, 29 de novembro de 2008

O Judeu

Os judeus na sociedade portuguesa do séc. XV


A sétima personagem a entrar em cena é um Judeu que carrega um bode às costas.

Para perceberes melhor esta cena, tens que conhecer um pouco a religião judaica e o estatuto dos judeus na época de Gil Vicente.

O judaísmo é uma religião monoteísta e de raízes históricas profundas que se baseia num livro de leis chamado Torá. A Torá consiste nos cinco livros de Moisés, cinco livros do Antigo Testamento denominado “Pentateuco” e algumas tradições que lhe foram acrescentadas ao longo dos séculos. Um dos traços mais característicos do judaísmo consiste na grande variedade de ritos e cerimonias. Um dos mais importantes é o “Sabbath”. A Torá diz alegoricamente que Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Este dia de descanso semanal, o Sábado, é respeitado por todos os judeus.


Os judeus em Portugal

A sociedade do séc. XV discriminava as pessoas em função da religião.

A maioria cristã receava e inferiorizava as minorias como os Judeus e os Mouros, que eram vulgarmente considerados inferiores relativamente ao cristianismo. Ambas as comunidades, judaica e mourisca, foram relegadas para bairros próprios – judiarias e mourarias.

No entanto, a rivalidade existiu sobretudo em relação ao povo judeu devido à sua superioridade económica e intelectual. A riqueza dos judeus era cobiçada pelos cristãos.

Hoje, felizmente, a presença dos Judeus em Portugal é encarada com toda a normalidade.


A abertura política e os judeus em Portugal, hoje

“Com a Revolução de Abril de 1974 iniciam-se mudanças profundas na sociedade portuguesa e na relação desta com os “seus” judeus.

A abertura política e a instauração da democracia e da liberdade em Portugal, vai permitir um outro olhar sobre a história e a identidade nacional.

À visão nacionalista estreita, sucede a consciência da importância das heranças árabe e judaica. Abrem-se os arquivos, surge à luz do dia a riqueza do contributo judaico, desde os primórdios da nacionalidade até ao decreto de expulsão, no séc. XV, mas também, os horrores das conversões forçadas, a longa noite da Inquisição, as discriminações dos cristãos novos.

Portugal descobre-se e ao descobrir-se encontra-se com os seus judeus. O pedido de perdão simbólico de Mário Soares, então Presidente da República, em 1989, pelas perseguições que os judeus sofreram em Portugal e a Sessão Evocativa dos 500 anos de Decreto de Expulsão dos Judeus em Portugal, em Dezembro de 1996, no parlamento português, na qual foi votada, por unanimidade, a revogação simbólica do Decreto, marcam, de facto, um virar de página no relacionamento mútuo.

Cresce muitíssimo o interesse, não só dos estudiosos, mas de vastos sectores da população sobre as questões judaicas, paralelamente a um processo de identificação histórica, por parte de grupos significativos da população. Basta dizer que, no último censo, cerca de seis mil pessoas se declararam judias, provavelmente por serem, ou se considerarem, descendentes de cristãos-novos.

Este interesse reflecte-se na Comunidade, através de solicitações crescentes que vão desde os inúmeros pedidos de visitas de escolas à Sinagoga, até à organização de cursos, palestras e seminários sobre judaísmo o que, de certo modo, veio abalar a tranquilidade da Comunidade obrigando-a a abrir-se e a dar respostas para as quais nem sempre estava preparada. Mas hoje em dia já não é possível viver fechado sobre si mesmo. A comunidade judaica, como qualquer outra minoria, integra-se num corpo social, relativamente ao qual tem direitos e deveres, não apenas individualmente, mas como colectivo. É este, aliás, o sentido da nova Lei de Liberdade Religiosa, ao regular o pleno exercício da prática religiosa, não apenas dos cidadãos, mas das colectividades religiosas.

Esther Mucznik, Os judeus em Portugal: presença e memória


O Judeu (Semah Fará?)


Gil Vicente giza o tipo do Judeu, exagerando sobretudo dois traços: o apego à religião, simbolizado no bode expiatório que ele não queria largar, e o seu proverbial amor ao dinheiro, expresso nas moedas com que tenta subornar o Diabo (com o objectivo de comprar a passagem para ele e para o bode). O transporte do bode redunda em cena cómica quando o Diabo se recusa a conduzi-lo na barca e, mais tarde, resolve levar ambos a reboque. O facto de o Diabo não ter permitido a entrada do Judeu na sua barca é muito significativo: marginaliza de tal modo o Judeu que o coloca num plano inferior ao dos restantes condenados ao Inferno. O próprio Enforcado tem licença para embarcar. Nesta cena, o Parvo troca o papel de comentador pelo de acusador e culpa o Judeu de profanar sepulturas cristãs e de comer carne em dia de jejum. Este é também acusado pelo Parvo de ter roubado o símbolo da sua religião – o bode.

Gil Vicente procura demonstrar, nesta cena, que o apego do Judeu à sua religião era tão forte que, nem mesmo depois de morto e com a verdade à vista, abandonava as suas ideias.

É de salientar que cada um dos pecadores depois de ter falado com o Diabo, dirige-se para a barca do Anjo, mas é repelido e inexoravelmente obrigado a entrar na do Diabo – há, no entanto, uma variante significativa para o Judeu que, sendo excluído da sociedade regular e, portanto, até da sociedade dos condenados, será levado a reboque da Barca do Inferno. Como é fanático pela sua religião – o judaísmo – nem sequer se dirige à Barca da Glória.

O Diabo recebe-o com desprezo, ao contrário da satisfação com que recebeu os outros passageiros, e não o quer deixar entrar na barca. No fim permite que o Judeu e o bode se desloquem a reboque da barca “ireis à toa”.


Elementos cénicos

Bode = apego à sua religião

O bode era usado pelos judeus na “cerimónia do bode emissário”, que simbolizava a remoção dos pecados de Israel. Durante a cerimónia, o sacerdote colocava as mãos sobre o bode (chamado de “azazel” ou emissário) e, simbolicamente, transferia os pecados do povo para o bode. O animal era, depois, levado para o deserto, onde não houvesse habitação. Assim, os pecados levados pelo bode jamais seriam relembrados.

O bode significa, portanto, a salvação dos pecados, a purificação, o que explica o apego do Judeu ao bode, mesmo depois da morte.


Curiosidade

Já ouviste falar na expressão “bode expiatório”. Quando se diz, por exemplo, que o Sr. X foi o bode expiatório de determinada situação, significa que o Sr. X foi a vítima, tal como o bode na cerimónia do bode emissário.


Com esta personagem, Gil Vicente dá-nos a conhecer como eram vistos os Judeus na sua época. De facto, eles eram vistos como indivíduos fanáticos pela religião e muito apegados ao dinheiro. O Judeu deste Auto nem depois de morto questiona a sua religião, nem sequer se aproxima da Barca da Glória e insiste em levar o bode, assim como em pagar a passagem. O Diabo não fica satisfeito com a presença do Judeu e decide transportá-lo a reboque da barca, o que reflecte a atitude xenófoba dos cristãos da altura.


Judaísmo versus Cristianismo

Judaísmo e Cristianismo eram religiões inconciliáveis. O deus uno e único da primeira não admitia a pluralidade cristã do mistério da Santíssima Trindade. (…) O antagonismo era, portanto, absoluto e não havia lugar para tréguas. Contra todos os modos, dos escritos às pregações se combateu a religião hebraica.

(…) E ao fanatismo de frades e clérigos se associou também este ou aquele prelado e a pena lúcida de alguns letrados. Fizeram-se contra os judeus muitas e gravíssimas acusações, legítimas algumas, mas as mais delas fantásticas e infames:

a) tinham assassinado Jesus e Deus espalhara-os pelo mundo, para castigo exemplar do seu execrando crime;

b) crucificavam crianças cristãs em lembrança do assassínio e lambiam-lhes o sangue;

c) açoitavam imagens de Cristo e profanavam as hóstias consagradas;

d) tinham parentesco com o Diabo, e usavam de usura para humilhar empobrecer os cristãos; (…)

e) eram uma raça de traidores e apátridas, de idólatras e sodomitas, impura, intocável, cujo contacto punha em perigo a pureza dos costumes e a integridade da Fé. Esta era uma pequena parte do requisitório.

Assim se foi criando, ao longo de séculos, um tipo ideal de judeu intrinsecamente mau e fisicamente repugnante.

Joel Serrão, Dicionário de História de Portugal


Curiosidade

A visão que os portugueses cristãos tinham sobre os judeus era de tal forma péssima que as palavras da família de judeu ainda hoje têm um sentido negativo. Repara:

Judeu

  1. indivíduo natural da Judeia;
  2. aquele que segue o judaísmo;
  3. pejorativo avarento;
  4. popular, pejorativo indivíduo materialista;
  5. popular, pejorativo indivíduo de má índole; indivíduo malvado.

Judia

  1. mulher natural da Judeia;
  2. a que segue o judaísmo;
  3. popular, pejorativo a que é avarenta, malvada ou materialista.


Judiar

  1. observar as leis e os costumes judaicos;
  2. discutir o custo, regatear;
  3. troçar, zombar;
  4. fazer maldades; praticar diabruras.

Judiaria

  1. fazer maldades; praticar diabruras;
  2. bairro dos judeus;
  3. troça; escárnio;
  4. maldade; diabrura; maus tratos.

Judas

  1. boneco de palha que se costuma queimar publicamente no Sábado de Aleluia;
  2. figurado traidor; falso amigo.


Arcaísmos, Neologismos e Estrangeirismos

O Judeu nos seguintes versos:

“Ao senhor meirinho apraz?

Senhor meirinho, irei eu?”

Refere-se ao Fidalgo.

► Arcaísmos – são palavras antiquadas, que caíram em desuso, porque ou surgiram novas palavras que as substituíram ou os objectos/conceitos que representavam deixaram de existir.

Neologismos – são palavras inventadas na actualidade para designar novas realidades como, por exemplo, radar, computador, telemóvel, euro.

Estrangeirismos – são palavras adoptadas de línguas estrangeiras, como poster, snack, surf, pub, entre muitas outras.


Sempre que possível, visando salvaguardar a nossa língua, devemos substituir os estrangeirismos por palavras correspondentes em português. Por exemplo, shopping corresponde a centro comercial, login a código de acesso, entre muitíssimos outros estrangeirismos que devemos evitar.

“Meirinho” era usado, antigamente, para designar um oficial de diligências ou um magistrado que governava uma comarca ou um território. Hoje em dia, estes conceitos desapareceram e meirinho é usado apenas como um adjectivo respeitante à lã e ao gado lanígero. Às palavras que fazem parte de uma língua mas que já não se usam chamamos arcaísmos.


Ter dúvidas é saber…


“Tens ouvisto”?!

Não! “Tens ouvido”

Mais um erro que se ouve muito! E mais uma vez, foi um aluno meu que deu este valente pontapé na gramática!

Depois de lhe ter dito que tal expressão não existia, ele disse-me que pensava que se podia dizer assim para significar ver e ouvir ao mesmo tempo…

Mas não! O correcto é dizer:

Eu tenho ouvido muitas coisas e eu tenho visto muitas coisas.

Ficamos, então, combinados? Ouvisto, nunca mais! Ouvido, sim!...


A Mena na cozinha

Salada de grão com pastéis

400 g de grão cozido
1 cebola pequena
salada de alface, agriões, canónigos...
3 tomates maduros
azeite
vinagre de sidra
sal
orégãos
azeitonas pretas
pastéis de bacalhau

Descasque e pique a cebola, misture-a com os grãos cozidos. Junte a salada verde, as azeitonas cortadas aos pedaços e o tomate lavado e cortado aos cubos.

Tempere com sal, azeite e vinagre. Polvilhe com os orégãos e mexa delicadamente.

Sirva com pastéis.
Bom apetite!


Trabalhinho: caixa "Princesa"